
O psiquiatra Pablo Almeida Rocha está crescendo no Instagram com artes questionadoras e assuntos pertinentes. Autista adulto, Pablo quebra preconceitos e mostra o seu profissionalismo com muita sinceridade. Em entrevista exclusiva, ele fala sobre o transtorno espectro autista, suas vivências e a suposta “epidemia do autismo”.
JA: Qual o maior desafio que você encontrou ao trabalhar com autistas adultos?
P: São muitos os desafios, mas pela minha prática os mais difíceis são principalmente 2: a falta de profissionais de saúde que tenham experiência em lidar com autistas adultos e a relação com o trabalho.
Quanto à dificuldade de profissionais de saúde nessa área: não é fácil acharmos médicos e psicólogos com experiência e abertura para lidar com esse público, mas até que encontramos quando procuramos um pouco mais, e aí a gente cria uma rede de apoio todos juntos e conseguimos avançar. Mas encontrar terapeutas ocupacionais que atendam autistas adultos é extremamente difícil, o que é muito ruim dado a importância dessa especialidade em diversos aspectos que causam sofrimento, como as questões sensoriais, habilidades sociais e organização de rotina. Psicopedagogos que trabalhem com adultos autistas, então? Para ajudar a estruturar estratégias de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo no trabalho? Mais difícil ainda.
E quanto à relação com o trabalho: acho que é uma das maiores dificuldades no mundo adulto autista, se não for a maior. Atualmente a capacidade funcional de uma pessoa acaba sendo um fator imenso na construção da própria autoestima – o que acho um erro, mas enfim, é o mundo em que vivemos. O adulto autista acaba tendo muita dificuldade em diversos pontos relacionados ao trabalho, o que impacta muito na sua capacidade de trabalhar, o que por conseguinte acaba impactando na sua própria percepção enquanto pessoa e de seu valor perante a si e ao mundo. É um sofrimento muito grande. Por isso existe um esforço muito grande de muitos profissionais de saúde para que existam adaptações de fato nos locais de trabalho que permitam que o ambiente e as funções sejam minimamente toleráveis para os adultos autistas, para que a pessoa autista consiga pelo menos trabalhar sem chegar em casa exausta e não conseguir fazer mais nada com sua vida. As vagas para PCD são muito importantes, mas tão importantes quanto são as adaptações nos locais de trabalho.
JA: Você está no espectro autista?
P: Estou sim. Tive o diagnóstico tardio, já na fase adulta, há alguns anos. Tive uma série de dificuldades e sofrimentos ao longo da minha vida, o que levou a investigações e por fim o diagnóstico. Eu já era médico, inclusive – e muito desse caminho eu que fui estudando e ajudando os profissionais a me entenderem. Tive muita sorte de encontrar ótimos psicólogos e psiquiatras no meu caminho, e que inclusive se tornaram modelos para mim para que eu consiga também ajudar os outros como eles me ajudaram.
JA: O seu Instagram está bem movimentado. Qual tem sido a receptividade?
P: Estou surpreso com a receptividade! Acho que estou tendo um engajamento bem interessante, as pessoas estão comentando sobre questões de sua própria vida, estão se abrindo para dar suas opiniões e histórias pessoais, estão rindo comigo – e às vezes chorando juntos. Fico muito feliz com essa participação, porque é um sinal muito grande de confiança das pessoas ao compartilhar questões tão pessoais.
Outra coisa que me surpreendeu, mas desta vez de maneira muito negativa, são as pessoas que fazem comentários agressivos. Eu já sabia que teria, claro, até mesmo porque todos nós sabemos que a nossa sociedade nem sempre aceita tão facilmente as pessoas diferentes. Mas eu não imaginava que seria tanto, e que seriam tão agressivos. Esse meu perfil no Instagram é recente, e no começo eu até pensei em deixar esses comentários nas postagens e conversar com a pessoa, em respostas públicas, para tentarmos um diálogo; mas isso estava me deixando mal, com um sentimento ruim. Então agora quando tem um comentário agressivo e ofensivo assim eu só bloqueio direto a pessoa e pronto. O comentário some, e tento não ficar pensando nisso. Mas os comentários que só discordam, com educação, isso tudo bem, acho até interessante para ter um contraponto; eu só bloqueio aquilo que é ofensivo de maneira gratuita. E tenho que ficar de olho: pelo menos duas vezes por dia tem comentários assim.
JA: O que você acha das pessoas que alegam que há uma “epidemia de autismo”?
P: Eu entendo as pessoas pensarem nisso. De fato está tendo muito mais diagnósticos, está se falando mais nisso, tem muito mais crianças “laudadas” nas escolas, tem muito mais pessoas se assumindo autistas. Todo mundo atualmente deve conhecer pessoalmente uma pessoa autista. Então eu realmente entendo as pessoas acharem que está aumentando os casos de autismo, ou então que o autismo (principalmente o nível 1 de suporte) é algo “inventado”.
Mas essas pessoas tem que entender que isso tudo não surgiu agora. A diferença é que agora se está falando sobre isso. Antigamente essas pessoas se escondiam, eram internadas em hospícios, ficavam isolados a vida toda em casa, eram massacrados nas escolas, eram considerados ermitões ou doidos, pessoas excêntricas, estragadas da cabeça, parafuso a menos – entre diversos outros nomes. A questão é que agora temos um nome que unifica diversas pessoas que antes estavam espalhadas e com seu sofrimento invisibilizado por aí.
É só essas pessoas pensarem na própria história e na própria família que vão entender. Quase todos vão lembrar de um tio que não participava de nada da família e não conversava com ninguém, ou alguém da cidade que era completamente isolado, ou então coleguinhas na escola que tinham muitas dificuldades de socialização e às vezes de entendimento. Sempre estivemos por aqui – mas agora estamos tentando não mais ser invisíveis.
JA: Como conscientizar outros médicos sobre o TEA?
P: O TEA está presente na nossa sociedade, e como está sendo cada vez mais falado acaba que as pessoas autistas estão se soltando mais e se afirmando visíveis para o mundo, aparecendo, convivendo nos espaços. Cada vez mais penso que as pessoas autistas vão se permitir assumir a dita excentricidade de seu comportamento e camuflar menos – e assim o TEA vai sendo ainda mais visível.
Falo isso porque a conscientização que vejo mais necessária não é aquela que fala que o autismo existe – porque isso está mais do que evidente, acho que estamos passando já desse tempo de consideramos que são poucas pessoas que estão no espectro. A conscientização que acredito ser mais importante para os profissionais de saúde em geral é a do entendimento do que é o autismo: como as pessoas autistas enxergam o mundo, suas dificuldades, particularidades, e assim vai.
E o jeito mais eficaz dessa conscientização é por meio do estudo. O estudo do TEA tem que estar mais presente nas formações dos profissionais de saúde, isso é fato. Mas penso que deveria ir além: da mesma maneira que discutimos alguns transtornos e modos de viver durante a escola (ensino fundamental e médio), o autismo também deveria ser mais abordado e de maneira mais estruturada logo cedo.
JA: Quem faz as artes do seu perfil?
P: O meu logotipo foi feito por uma designer que gosto muito, a Bruna Vieira. Ela que teve a ideia de usar essa mandala que eu adorei e uso no rodapé de todos os meus posts. Mas o restante da arte – as cores (ou a ausência delas), os desenhos e a montagem das postagens sou eu que faço.
JA: Dê um recado para as pessoas que estão lendo a entrevista.
P: O autismo já está aqui entre nós – seja em você ou seja em algumas pessoas à sua volta, estando aparente ou não. E não é de hoje não, viu? Então não tenha medo, não precisa ter receio. Somos todos humanos, e cada um é meio diferente à sua própria maneira. Acolher o autismo é bom até para os neurotípicos: entendam que as pessoas podem ser diferentes, aproveitem esse entendimento e se soltem mais. Essa pressão de ter que se adequar a essa régua estreita do que é “normal” adoece qualquer um. Vamos todos ser estranhos, excêntricos, e tá tudo bem!

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