Arquivo Shutterstock/Lucas Mello
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No Brasil, falar de política em roda de amigos ou no almoço de domingo tem sido quase tão arriscado quanto discutir futebol com torcedor fanático. Isso porque, nos últimos anos, o país viu crescer um fenômeno preocupante: o fanatismo partidário.

De um lado, gente que defende seu político como se fosse parente. Do outro, pessoas que odeiam certos partidos com a mesma intensidade com que torcem contra o time rival. E no meio disso tudo, a democracia vai ficando sufocada, como se não houvesse mais espaço para o debate ou para o contraditório.

Mas como chegamos a esse ponto?

Para entender, é bom lembrar que o Brasil tem uma história marcada por rupturas e extremos.

A redemocratização em 1985 trouxe esperanças de um debate político mais maduro, mas essa expectativa não se concretizou por completo. A Constituição de 1988 foi um marco, mas os partidos políticos continuaram funcionando mais como legendas de aluguel do que como instituições sólidas e ideologicamente claras. Muitos partidos mudam de lado conforme o vento político, e isso só aumenta a desconfiança do eleitor.

Mesmo assim, nas últimas décadas, vimos surgir uma polarização mais intensa. O PT (Partido dos Trabalhadores), fundado em 1980 com raízes nos movimentos sindicais e sociais, se consolidou como uma das principais forças políticas do país. Com a chegada de Lula à presidência em 2003, o partido se fortaleceu ainda mais. No entanto, os escândalos de corrupção, como o Mensalão (2005) e a Operação Lava Jato (a partir de 2014), alimentaram um sentimento antipetista que cresceu com força.

Do outro lado, surgiu uma reação igualmente apaixonada: muitos eleitores passaram a ver em partidos como o PSDB, e mais recentemente o PL (Partido Liberal), uma espécie de “salvação” contra o que chamam de “esquerdismo”.

A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, foi o ápice dessa polarização. Eleito com um discurso antipetista e antissistema, Bolsonaro passou a ser idolatrado por seus apoiadores de forma quase religiosa. Qualquer crítica a ele virou, para muitos, uma ameaça pessoal.

A cientista política Lilia Schwarcz, em várias de suas análises, aponta como a política brasileira atual está marcada por um “maniqueísmo tóxico”, onde só existem dois lados: o bem absoluto e o mal absoluto. Já o também cientista político Christian Lynch alerta que a “partidarização das emoções” é uma armadilha, pois impede o cidadão de avaliar com racionalidade as ações dos governos e partidos.

A essa lógica do “nós contra eles” não é novidade na política mundial, mas no Brasil ela tem ganhado contornos mais dramáticos. O fanatismo partidário transforma o adversário em inimigo e impede qualquer tipo de diálogo. Isso ficou evidente, por exemplo, na invasão dos Três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. Ali, vimos um grupo de pessoas que, acreditando estar “salvando a pátria”, atentou contra os próprios pilares da democracia.

Além disso, o fanatismo faz com que muitos brasileiros ignorem ou relativizem fatos gravíssimos. Corrupção, autoritarismo, ataques às instituições — tudo isso pode ser “aceitável”, dependendo de quem esteja no poder. Quando o político de estimação erra, é sempre “culpa da imprensa”, “armação do sistema”, ou “narrativa da oposição”.

É claro que ter preferência política é legítimo e saudável numa democracia. O problema é quando essa preferência vira cegueira.

Como dizia o jornalista Millôr Fernandes: “O pior cego é o que só vê o que quer.” Ou, como disse certa vez o cientista político Sérgio Abranches, um dos criadores do termo “presidencialismo de coalizão”, “a política brasileira é feita muito mais de paixões do que de projetos”.

Para sair desse buraco, o país precisa de mais educação política e menos culto à personalidade. Precisamos aprender que discordar não é odiar. Que mudar de opinião não é fraqueza. E que nenhum político é santo ou demônio. O Brasil tem desafios imensos pela frente — econômicos, sociais, ambientais — e não vai superá-los enquanto seus cidadãos estiverem mais preocupados em vencer discussões no WhatsApp do que em construir soluções conjuntas.

No final das contas, política não deveria ser guerra, e sim diálogo.

E isso só é possível quando deixamos o fanatismo de lado e passamos a enxergar o outro, não como inimigo, mas como parte do mesmo barco chamado Brasil.

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