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Quando pensamos em educação para uma criança surda, qual é a primeira imagem que vem à mente? Para muitos, a ideia se resume à superação de uma barreira: a da audição. No entanto, essa visão é limitada. A surdez não é uma ausência, mas sim a porta de entrada para uma experiência de mundo diferente, com uma cultura e, principalmente, uma língua própria: a Língua Brasileira de Sinais (Libras). É nesse ponto que a educação bilíngue se revela não como uma opção, mas como um direito fundamental.

Falar em bilinguismo para surdos é falar sobre identidade, desenvolvimento e cidadania. O modelo que defende esse direito propõe um caminho claro e poderoso: a Libras como primeira língua (L1) e a Língua Portuguesa, em sua modalidade escrita, como segunda língua (L2). Mas como isso funciona na prática?

Para entender um pouco, podemos fazer alusão à construção de uma casa. A primeira língua é o alicerce. Para a criança surda, a Libras é essa base sólida. Sendo uma língua visual-gestual, ela é adquirida de forma natural, permitindo que a criança pense, se expresse, desenvolva o raciocínio abstrato e construa sua identidade social e cultural junto à comunidade surda. É em Libras que ela vai aprender sobre o mundo, fazer amigos, entender conceitos matemáticos e científicos e, crucialmente, se entender como indivíduo. Negar o acesso à Libras desde cedo é como construir um edifício sobre um terreno instável, comprometendo toda a estrutura do aprendizado futuro.

Uma vez que esse alicerce está firme, entra em cena a segunda língua: o português. O objetivo aqui não é forçar a oralização, mas garantir o acesso pleno à cultura escrita do nosso país. Através do português, o aluno surdo poderá ler os clássicos da nossa literatura, navegar na internet, ingressar no ensino superior e competir no mercado de trabalho. Uma língua não anula a outra; elas se complementam. A fluência em Libras facilita a compreensão das estruturas complexas do português, transformando a leitura e a escrita em uma ponte para um universo ainda mais amplo, e não em um muro de frustração.

Ressalva-se, porém, que a implementação desse modelo ideal enfrenta obstáculos gigantescos em nosso país, que precisam ser discutidos abertamente. O primeiro deles é a formação de professores. Não basta que um educador saiba se comunicar em Libras. É preciso que ele seja fluentemente bilíngue e, mais importante, que tenha o preparo pedagógico para ensinar em Libras e para lecionar o português como segunda língua. Essa é uma especialidade complexa. Infelizmente, ainda são poucos os profissionais que dominam as duas línguas e as metodologias de ensino adequadas, o que resulta em salas de aula onde a inclusão é mais um desejo do que uma realidade efetiva.

O segundo grande desafio reside nos materiais didáticos. A grande maioria dos livros e recursos pedagógicos é criada por e para ouvintes, baseando-se em uma lógica sonora e textual que não faz sentido para o aluno surdo em processo de alfabetização. Um material verdadeiramente acessível precisa ser pensado de forma bilíngue desde sua concepção. Imagine livros que, além do texto em português, contenham QR Codes que levam a vídeos de um intérprete narrando a história em Libras. Imagine plataformas digitais com glossários visuais e atividades que explorem o potencial gráfico e espacial, conectando os sinais da Libras aos conceitos escritos. A criatividade do design gráfico e da tecnologia é essencial para criar essas pontes e tornar o conteúdo realmente significativo.

Nessa conformidade, a educação bilíngue para surdos é muito mais do que um método de ensino. É um projeto de inclusão real, que respeita a cultura surda e, ao mesmo tempo, oferece as ferramentas para uma participação plena na sociedade brasileira. Investir na formação de professores e na produção de materiais acessíveis não é um custo, mas um passo decisivo para garantir que o direito à educação seja, de fato, para todos. O foco deve ser sempre este: garantir que cada aluno tenha a liberdade de ser quem é e o poder de alcançar o que quiser, em ambas as línguas.

Karoly Diniz Mestranda em Educação Inclusiva – UNIFESP

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