O projeto Beleza Além da Visão (@belezaalemdavisao) foi idealizado por Carolina em 2022 Reprodução: Instagram
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Em meio à falta de acessibilidade em cosméticos no Brasil, Gabrieli Fermo e Carolina Lemos, jovens com deficiência visual, mergulham no universo da maquiagem e do autocuidado e mostram que a beleza vai além do que podemos enxergar. 

É com vídeos no aplicativo TikTok que Gabrieli Maria Fermo (@gabrielifermo1), de 19 anos, compartilha a sua rotina como deficiente visual. Estudante de Direito em Santa Catarina, ela concilia seus estudos com a produção de conteúdo para a Internet. Entre vídeos de curiosidades e conscientização, Gabrieli, portadora da Amaurose Congênita de Leber – doença degenerativa hereditária rara que leva à disfunção da retina numa idade precoce – apresenta de forma simples e pessoal como o autocuidado está presente no seu dia a dia.

Gabrieli Fermo (@gabrielifermo1) produz vídeos para o aplicativo Tiktok desde agosto desse ano
Reprodução: Gabrieli Fermo/ arquivo pessoal

 Sempre muito vaidosa, a maquiagem ocupa desde cedo um lugar muito especial na sua vida. Até pouco tempo atrás, quando ainda não conseguia se maquiar sozinha, fazia questão de pedir alguém. Em um dos vídeos que viralizou no seu perfil, a estudante mostra o passo a passo de como realiza a sua maquiagem nos dias em que vai para a faculdade. Apesar das dificuldades que a sua deficiência apresenta, ela sempre encontra e desenvolve uma alternativa que a auxilie quando o assunto é se cuidar. “Como deficiente visual, acaba sendo um pouquinho mais complicado por vários fatores. Algumas técnicas de maquiagem são mais complicadas ou até mesmo por conta dos produtos não terem acessibilidade. Porém, eu tento vencer esses obstáculos e me maquiar, porque a maquiagem para mim é algo essencial,” ela relata.

Segundo dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que no Brasil existam mais de 6,5 milhões de pessoas que possuem algum tipo de deficiência visual. Mesmo com uma grande parte desse número tendo acesso ao código Braile, a sua difusão ainda não é total. Comemorado nacionalmente no dia 8 de abril e presente na maior parte das vezes em livros didáticos e caixas de medicamentos, o sistema não está incluso totalmente na rede de cosméticos. Com essa falta, deficientes visuais buscam formas alternativas de se adaptar e identificar os produtos da maneira que podem. 

Como no caso de Gabrieli, que na hora de comprar as suas maquiagens, precisa estar sempre acompanhada de alguém. A falta do código nas embalagens dificulta a identificação de informações cruciais para um cosmético, como a cor, espessura e marca. “São informações que, muitas das vezes, para vocês podem parecer fúteis, mas para a gente que tem deficiência visual, são extremamente importantes”, confessa. Apesar disso, Gabrieli busca se virar como pode, combinando a ajuda externa que recebe de um acompanhante com as estratégias que desenvolveu sozinha ao longo de sua vida. “Para identificar meus produtos, eu diferencio eles pelo formato, por exemplo. Cada produto tem o seu formato e, quando eles são muito parecidos, eu tento diferenciá-los pelo cheiro. Não é sempre que dá certo, às vezes me confundo. Então, eu acredito que se as marcas tivessem um pouco mais de acessibilidade, seria mais fácil para a gente que tem deficiência visual.” 

Outro ponto importante que a influenciadora destaca é a falta de representatividade de pessoas com deficiência visual em campanhas publicitárias de produtos, como a maquiagem e cosméticos em geral. Para ela, essa ausência influencia diretamente na percepção das pessoas acerca dessas mulheres e nas relações das mesmas com a própria autoestima. “Eu acredito que essa falta de representatividade impossibilita as pessoas de saberem que mulheres com deficiência visual também usam maquiagem e cuidam do seu cabelo. Na minha opinião, se essas marcas adotassem essa representatividade atípica, mudaria muito a opinião da sociedade. Acredito que isso incentivaria ainda mais o autocuidado de pessoas com deficiência visual, assim como eu”, diz ela. 

“Nós sofremos preconceito, nós não temos uma inclusão de fato e em muitos lugares nos falta acessibilidade. Então, eu espero estar incentivando outras mulheres a desenvolverem sua liberdade e a não estarem sempre dependendo de alguém” 



A jovem reforça que a sua maior luta é pelo poder da autonomia dessas mulheres e pela acessibilidade mais democratizada para todos. “Tem uma frase que eu carrego comigo que é: ‘Nós não precisamos nos adaptar ao mundo, o mundo que precisa se adaptar a nós’”. Seu desejo é que, com os seus vídeos, ela esteja alcançando positivamente pessoas que estão dispostas a garantir essa equidade no mundo. “Como, por exemplo, chegar às marcas de cosméticos e tentar tornar eles mais acessíveis,” finaliza.

Marcas como Natura e Vizcaya trabalham com o código Braile em suas embalagens. A iniciativa que implanta a acessibilidade aos cosméticos é muito importante, porém, segundo Carolina de Lemos (@carolinadelemos_) – massoterapeuta e consultora de beleza que também possui deficiência visual – ainda existem questões que devem ser levadas em conta. “Algumas embalagens, como a da Natura, têm o nome em Braile. Porém, na caixa. Quando você leva na bolsa, às vezes molha, amassa e rasga. Ali, você perde aquele nome que vem em Braile, a etiqueta que você consegue saber se é um blush, pó ou uma base. Eu acredito que as marcas deveriam colocar essa informação na própria embalagem”, diz ela. Essa é apenas uma das diversas questões que são discutidas e trabalhadas em seu projeto Beleza Além da Visão. De Paulista, município do estado de Pernambuco, Carolina lidera e organiza o projeto voluntário cujo objetivo é ensinar outras mulheres com a mesma deficiência visual a conquistarem e desenvolverem a sua autonomia e amor-próprio. Tudo isso através, é claro, da maquiagem. 

Carolina de Lemos (carolinadelemos_) é consultora de beleza e massoterapeuta
Reprodução: Carolina de Lemos/arquivo pessoal

Com a perda total de sua visão aos 26 anos, devido a uma série de complicações oculares ocasionadas pela Uveíte – inflamação no corpo que afeta os olhos – Carolina passou por um processo de depressão. Ao começar a frequentar o Instituto de Cegos em Recife, voltou a sair, passear e a enxergar cor em sua vida novamente. “Quando eu ia sair, eu precisava que as pessoas me maquiassem. Foi quando eu coloquei na minha cabeça que eu não ia mais depender de ninguém para isso, para me arrumar. Comecei a tentar criar técnicas para me maquiar sozinha”, revela. 

E não demorou muito para que as suas maquiagens começassem a chamar a atenção. Foi a partir de um elogio que recebeu de uma amiga que surgiu o desejo de criar o projeto. “Ela me perguntou se eu poderia ensinar a maquiagem para outras pessoas e eu já vinha pensando nisso, sabe? Em passar esse conhecimento para frente, para outras meninas. Despertou em mim essa vontade de ensinar.” As oficinas ministradas vão de cidade em cidade e a frequência do projeto – que pode ser ministrado tanto em curso quanto em oficina – varia conforme os patrocínios que recebe. De forma totalmente voluntária, Carolina procura fechar parcerias com instituições e associações para conseguir recursos necessários para o coletivo, como o transporte e o almoço. As maquiagens utilizadas na maioria das vezes saem do seu próprio bolso. Segundo a idealizadora, muitas delas nunca se maquiaram e, por esse motivo, não possuem os itens necessários. “Nenhuma marca patrocina o projeto. Muitas famílias vivem dos benefícios dessas meninas e não têm como estar comprando maquiagem. Então, geralmente, eu compro os produtos que podem ser compartilhados na hora, como blush, paletas de sombras e hidratantes faciais.”

O projeto Beleza Além da Visão (@belezaalemdavisao) foi idealizado por Carolina em 2022
Reprodução: Instagram

Para a consultora de beleza, conhecer o próprio rosto é essencial. Antes de dar dicas mais práticas, Carolina gosta de iniciar as aulas com a atividade que chama de “reconhecimento facial”. Na qual cada uma das mulheres desenvolve um toque mais apurado e preciso em seus rostos. Para ela, esse processo é fundamental na hora de saber qual item de maquiagem usar. “Também explico o efeito que dá na face. Muitas delas nunca enxergaram, então não sabem como é a cor ou o efeito que fica na pele. Conversamos sobre isso e vamos avançando.” 

O projeto também conta com oficinas de Embelezamento Capilar
Reprodução: Instagram

Queria que todos entendessem que autoconfiança e autoestima não dependem apenas da visão, e que toda mulher tem direito de explorar e definir a sua própria beleza do seu jeito. O importante é o respeito, incentivo e apoio à autonomia de cada uma”

O perfil das mulheres que participam da oficina segue um padrão. A razão de nunca terem dedicado tempo ao autocuidado e rotinas de beleza é quase sempre o mesmo: deixar de lado a si mesma para priorizar o trabalho ou a família. “Muitas são daqui do interior e passaram por muita coisa difícil na vida, valorizaram outras coisas. Agora elas passam a se tratar como prioridade.” No tempo em que passa com elas, Carolina sempre reforça que a falta da visão não as impede de descobrir o que há de melhor dentro delas. “Muitas delas já me perguntaram: ‘Se eu não estou me vendo, para que devo me arrumar?’ Eu digo que a beleza é algo que vem de dentro para fora, que transforma o interior.”

A beleza vai além da visão, ela está na coragem de se reinventar e na alegria de se sentir bem consigo mesma. Você pode tudo, inclusive ser referência e inspiração para outras mulheres”

Além dos encontros presenciais, Carolina faz questão de manter um contato on-line com as participantes. “Eu mantenho grupos no WhatsApp, onde a gente dá suporte umas para as outras. Elas mandam vídeos, áudios, fotos das maquiagens que fizeram e técnicas novas que tentaram desenvolver. Até as dificuldades que estão sentindo elas compartilham comigo.” O projeto, que está se expandindo para além da maquiagem, agora também conta com a modalidade de embelezamento capilar. A ideia surgiu depois da grande demanda das participantes sobre o uso de ferramentas de calor, como pranchas de cabelo e secadores. “Primeiro, a gente começa falando um pouco sobre cada tipo de cabelo e o benefício de cada hidratação. Depois a gente coloca a mão na massa com as ferramentas de calor”.

Para as mulheres que enfrentam a mesma condição, ela deixa um recado: “Experimente, busque apoio, use seus sentidos. Explore o tato, as texturas e os cheiros e descubra sua verdade. Você pode tudo, inclusive ser referência e inspiração para outras mulheres”, finaliza.

Emilly Andreia é jornalista em formação pela UFRJ e colunista do Jornal Atípico
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