
No primeiro dia de dezembro, minha casa acorda com uma alegria que não precisa de aviso nem preparo. É o aniversário da minha esposa. Desde que Delaine chegou, essa data acende uma luz diferente no nosso cotidiano, como se o dia viesse embalado em delicadeza própria. Ela sempre desperta achando que algo bom vai acontecer; e eu, mesmo sem prometer nada, quase sempre deixo acontecer.
No dia seguinte, é a vez do aniversário da minha filha. E essa coincidência, que o calendário poderia ter distribuído de forma banal, virou um laço bonito entre elas. Já improvisamos mesas às pressas, comemoramos em dobro, rimos misturado, acendemos velas de aniversário que pareciam iluminar o mesmo sopro de alegria. Não foi o tempo que construiu isso. Foi a convivência. Foi a escolha. Foram os gestos que se reconhecem.
Delaine entrou na vida das minhas filhas como quem chega com a alma aberta. Nunca quis ocupar o lugar de ninguém, nunca desejou disputar sombra nem afeto. Disse, desde o início, que não seria a madrasta má das histórias, que seria uma presença honesta. Alguém que acompanha, que orienta, que partilha. E Kenya e Kelly a acolheram com amizade verdadeira. Ver esse vínculo crescer é um privilégio silencioso. Há beleza em testemunhar três mulheres que não precisavam, mas escolheram construir cuidado.
Tenho meus modos próprios de celebrar. Não gosto de um amor que vire protocolo, nem de transformar afeto em checklist anual. Mas Delaine sempre espera o café da manhã na cama. Às vezes eu levo, às vezes surpreendo de outro jeito. E essa espera diz mais sobre nós do que qualquer gesto planejado. Entre filhos, netos e a ausência que 2019 me deixou quando perdi minha mãe, minha família é tudo o que eu tenho. Tudo o que eu sou.
Talvez por isso os acontecimentos desta semana tenham me atravessado com tanta força.
Como compreender que uma simples linha de anzol seja suficiente para um homem atirar a própria esposa aos tubarões? E pior: como entender que ele faça isso duas vezes? Como aceitar que alguém arraste uma mulher pela Marginal Tietê como se ela fosse objeto? Ou que um influenciador, conhecido por ensinar “postura”, seja preso por agredir justamente a mulher com quem divide a casa?
O que me assusta não é apenas a violência em si, mas a banalidade que a antecede. A rapidez com que a frustração vira ódio. A facilidade com que um cotidiano se transforma em risco. O instante em que um parceiro se converte em algoz. O amor que prometeu cuidar é o mesmo que tenta destruir. Não há lógica que dê conta disso. Não consigo imaginar nenhuma das mulheres da minha vida passando por algo semelhante. Só de supor, o pensamento se torna insuportável, porque ele dói antes mesmo de existir.
Enquanto celebramos aniversários aqui em casa, os números do país contam outra história. Crescem as perseguições, a violência psicológica, as ameaças que antecedem o feminicídio. São estatísticas que parecem frias, mas ali estão registradas as horas que antecedem o tapa, o silêncio que precede o grito e o medo que anuncia o fim.
E talvez seja exatamente aqui que os dois mundos se cruzem: o íntimo e o social.
Porque amar as mulheres da minha família me obriga a olhar também para as que não têm quem as ampare, para as que convivem com o perigo dentro de casa e para as que talvez nem alcancem o próximo aniversário. Ser homem, para mim, nunca foi sinônimo de força física; é sinônimo de responsabilidade. Responsabilidade de não tolerar machismo, de não normalizar insultos, de criar filhos decentes, de apoiar autonomia e independência feminina. Proteção não é posse. É permitir que cada mulher caminhe com liberdade.
No próximo ano, quando eu preparar o café da manhã para Delaine, seja na cama ou não, vou saber que o gesto carrega outra intenção. Não apenas celebrar sua vida, mas reafirmar que cada vida feminina merece continuidade. Em um país onde tantas mulheres não chegam ao dia seguinte, cada aniversário que comemoramos é também um manifesto silencioso. Que nenhuma mulher precise sobreviver para merecer o próprio amanhã. Porque, no fim das contas, garantir que ela amanheça viva é o mínimo que um país decente deveria entregar.




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